Neste artigo desejo fazer um singelo comentário sobre Dom Quixote de La Mancha, história escrita por Miguel de Cervantes. Falarei sobre o que essa leitura significou para mim, e de que maneira me transformou.
Contudo, devo deixar bem claro que esta é uma visão puramente pessoal, ok?
Não sou especialista em literatura, mas, antes de tudo, uma apreciadora de bons livros.
Primeiramente, devo dizer que, no começo, eu ODIEI a leitura. Achei-a totalmente repetitiva e entediante. Entretanto, após procurar alguns artigos de literatos especialistas, falando sobre os simbolismos da obra, mudei o olhar. Desde então, comecei a amar a trama e seus personagens.
#1 – A loucura que liberta
✔Dom Quixote era um típico nobre europeu super entediado que, tão somente, sobrevivia a uma existência com excesso de ócio. Porém, ao cultivar o hábito de ler histórias de cavalaria, ele começa a se enxergar como um verdadeiro cavaleiro andante.
Neste quesito, penso naquela ideia de: você se torna o conteúdo que muito consome, em todos os sentidos: seja a comida que influencia seu corpo, seja ideias contidas em livros e redes sociais. Sua nutrição mental influencia sua cosmovisão (visão de mundo) e de si mesmo.
✔Contudo, ele foi além de se imaginar um cavaleiro andante. Ele, de fato, se tornou um. Seu desejo ardente, seu pensamento focado, de fato, o impulsionou à ação.
Aquilo em que continuamente pensamos, se torna realidade. Muitos espiritualistas falaram sobre isso. Seja para o bem, seja para o mal, nossos pensamentos persistentes podem criar nossa realidade.
✔Dom Quixote decide, então, VIVER DE VERDADE, decide viver uma vida de aventuras. Ele se permite, portanto, sair do modo sobrevivência confortável e entediante, e sai pelo mundo cometendo, literalmente, muitas loucuras, além de alguns atos de braveza. Aliás, as pessoas que o conheciam diziam que ele havia enlouquecido. E o bacana é que ele se torna muito conhecido e “prestigiado”. Dom Quixote, de alguma forma, se tornou referência em sua época. Sua ousadia o livrou do anonimato de uma vida confortável mas que, no entanto, não fazia muito sentido para ele.
Penso que viver é ter histórias para contar. Histórias das quais nos orgulhamos. Ainda que ninguém precise viver experiências épicas na vida, o importante é sentir orgulho da história que construiu. Dom Quixote foi um nobre que só sentiu orgulho de si quando saiu pelo mundo travestido de cavaleiro andante. Portanto, isso faz pensar: que histórias queremos deixar no mundo?
✔Ao sair pelo mundo vivendo “sua verdade”, Dom Quixote influenciou muitas pessoas e gerações. Desde os mais abastados nobres, aos mais simples camponeses, quase todos conheciam a fama do Cavaleiro da Triste Figura. E, para além da mera vaidade de ser famoso, Dom Quixote inspirou pessoas. Ele tocou em almas, ele mudou maneiras de pensar e enxergar a vida.
Como nossa vida tem tocado a vida de outras pessoas?
✔Dom Quixote era motivo de piada para a maioria das pessoas. De fato, quase todos o consideravam um louco excêntrico, e muitos riram às custas de sua fantasia. Especialmente os nobres, criaram situações hilárias para debocharem de Dom Quixote e seu fiel escudeiro. Contudo, nem isso impediu que o cavaleiro andante vivesse experiências magníficas. Muito ao contrário, ele conheceu lugares nunca dantes imaginados (como o mar). De fato, Dom Quixote foi celebrado e reconhecido em grandes reinos, recebido com honras. Dormiu em palácios luxuosos, banqueteou-se com fartura, e tudo a convite! Por confiar em sua identidade, e não temer a opinião alheia, ele viveu experiências que, em muito, suplantou sua entediante rotina de um baixo nobre.
Até que ponto vale a pena nos preocuparmos com nossa reputação e com a opinião alheia? Até que ponto devemos refrear nossos sonhos, pensando na reação dos outros? Quanto podemos viver, ou deixar de viver, se nos preocuparmos demais com as convenções sociais? Até onde a coragem de viver “nossas loucuras” pode nos levar?
✔Dom Quixote praticamente morreu de desgosto quando o forçaram a voltar à “normalidade”. De fato, ele perdeu o brilho, a coragem, a vontade de viver quando voltou a ser apenas mais um pobre nobre entediado. Por conseguinte, os que tanto o queriam “proteger”, viram-no mergulhar em uma profunda e irremediável tristeza.
Será que realmente conseguimos enxergar as profundas necessidades daqueles a quem amamos? Até quando devemos exigir que todos se comportem como achamos que deveriam se comportar? Por último, existem realmente padrões bem definidos socialmente, nos quais todos se encaixam perfeitamente?
E assim termina a primeira parte deste singelo comentário sobre Dom Quixote.
#2 – Certas loucuras demandam recursos
Dom Quixote saiu pelo mundo para espraiar suas loucuras, porém, o fato de ser um nobre, com recursos, ampliou, em muito, suas possibilidades.
Fiquei pensando sobre os recursos que necessitamos para sermos livres e autênticos.
Muita gente sai pelo mundo sem dinheiro. Contando apenas com o carisma pessoal e a boa vontade alheia. E dá certo!
Outros oferecem seus serviços por onde passam. E também conseguem se manter em suas aventuras.
Em suma, o que desejo frisar é: quais recursos temos para ousarmos “viver nossa liberdade”? Seja dinheiro, seja carisma, seja força de trabalho. O fato é que precisamos de algo nos que mantenha vivos durante a jornada. Especialmente se quisermos bancar algumas loucuras.
A “loucura” de viver seu sonho requer alguma independência. Quero pontuar isso neste comentário sobre Dom Quixote: ser livre exige alguma autorresponsabilidade, demanda algum tipo de recurso. Caso contrário, os perrengues podem suplantar, em muito, as gratas experiências.
Ou, de alguma forma, a tão sonhada liberdade pode se tornar cativa do poder de outros que o sustentam.
# 3 – Não existe Dom Quixote sem Sancho Pança
Por fim, não tem como tecer um comentário sobre Dom Quixote de la Mancha, sem mencionar seu fiel escudeiro: Sancho Pança.
✔Sancho foi fiel em muitos sentidos, inclusive, em abraçar a loucura do seu senhor, e acompanhá-lo em seus flagelos e bonanças.
No fundo, Sancho queria obter sustento para sua família. Sonhava em ser governador de uma ilha, o que, em seu pensamento, lhe traria alguma estabilidade. Porém, no decorrer da obra parece que a verdade é que ele também tomou gosto por uma vida cheia de aventuras e imprevistos.
Algumas vezes a vida apresentava a eles oportunidades grandiosas, como, por exemplo, sentar-se à mesa de nobres riquíssimos e ser servido por uma criadela seleta. Daí surge a pergunta: como um mero Sancho Pança experimentaria toda essa opulência em sua pacata e pobre vida comum, se não fosse pela ousadia de seu amo? Porém, em alguns momentos, ele sofreu grandes infortúnios, especialmente por conta das obsessões de seu senhor por Dulcinéia.
É preciso certa consciência de que nossas escolhas trarão consequências, ora boas, ora ruins. E, quando temos um objetivo maior em mente, devemos espera-las com alguma resiliência.
✔Todavia, desejo destacar que no final da história, Cervantes foi mais generoso para Sancho do que para o próprio Quixote. O humilde servo finalmente alcançou a estabilidade que tanto desejara. Ele conseguiu os recursos para cuidar de sua sofrida família.
Dom Quixote, agora recolhido à condição de um mero nobre, reconheceu a amizade de seu fiel escudeiro, e presenteou-o.
Assim como, muitas vezes é preciso recurso para se aventurar pela vida, tantas outras vezes, faz-se necessária uma boa companhia. Reconhecê-las e retribuí-as é, sim, um ato à altura de um digno cavaleiro.
Conclusão deste comentário sobre Dom Quixote
Creio que nesta conclusão cabem mais perguntas que afirmações.
✔O que é viver, de verdade?
✔Quais as vantagens, e quais os preços a serem pagos pela liberdade?
✔Que histórias queremos deixar no mundo?
✔De que forma podemos imaginar que nossa história influenciará a vida das pessoas?
✔Será que existem pessoas dispostas a viver nossas loucuras conosco? Será que desejamos isso? O que poderíamos lhes oferecer em retribuição?
✔Que tipos de recursos temos/precisamos, neste momento, para sermos realmente livres? Ou, o que nos impede de começar a viver nossa história autêntica? Que recurso nos falta para sermos verdadeiramente livres?
✔Será que chegaremos à velhice com a sensação de termos vivido de verdade? Ou, simplesmente sobreviveremos, anos a fio, a uma existência socialmente aceitável? Como temos pensado e planejado nossa vida e nossa velhice?
✔O hábito da leitura mudou a história de Dom Quixote. Que hábitos temos cultivado em nossa vida, e como ele nos influenciam?
Bem… e este é o fim deste breve comentário sobre Dom Quixote de la Mancha, centenária e atemporal obra de Miguel de Cervantes.
Se você não leu o livro, recomendo bastante a leitura. Se já leu, gostaria muito de conhecer suas reflexões sobre a obra. Caso deseje, deixe-as na seção Comentários abaixo.
No mais, desejo-lhe sucesso, saúde e serenidade.
Cintia Amorim.